HISTÓRICO DA REDE PUXIRÃO

A emergência de identidades coletivas no Brasil nas últimas décadas tem revelado a existência de diversos grupos étnicos, organizados em movimentos sociais, que buscam garantir e reivindicar direitos, que sempre lhes foram negados pelo Estado. Desta forma, compreendem-se sem exaustão os motivos para o qual um país tão diverso em sua composição étnica, racial e cultural, a persistência de conflitos oriundos de distintas visões de mundo e modos de vida, que desencadeiam desde o período colonial, lutas pela afirmação das identidades coletivas, territorialidades especificas e reconhecimento dos direitos étnicos.



Na região Sul, especialmente no Paraná e Santa Catarina, a invisibilidade social é uma das principais características dos povos e comunidades tradicionais. Até pouco tempo atrás, a inexistência de estatísticas e censos oficiais fez com que estes grupos elaborassem seus levantamentos preliminares numa tentativa de afirmarem sua existência coletiva em meio a tensões, disputas e pressões que ameaçam seus diretos étnicos e coletivos garantidos pela Constituição Federal de 1988 e, diversos outros dispositivos jurídicos infraconstitucionais[1].



Destas demandas surge, na região Sul, a Rede Puxirão dos Povos e Comunidades Tradicionais, fruto do 1º Encontro Regional dos Povos e Comunidades Tradicionais, ocorrido no final do mês de Maio de 2008, em Guarapuava, interior do Paraná. Neste espaço de articulação, distintos grupos étnicos, a saber: xetá, guaranis, kaingangs, faxinalenses, quilombolas,benzedores e benzedeiras, pescadores artesanais, caiçaras, cipozeiras, religiosos de matriz africana e ilhéus; tais segmentos se articulam na esfera regional fornecendo condições políticas capazes de mudar as posições socialmente construídas neste campo de poder. Ademais, a conjuntura política nacional corrobora com essas mobilizações étnicas, abrindo possibilidades de vazão para as lutas sociais contingenciadas há pelo menos 3 séculos, somente no Sul do País.



sábado, 12 de março de 2011

As mulheres não são homens

A cultura patriarcal tem uma dimensão particularmente perversa: a de criar a ideia na opinião pública que as mulheres são oprimidas e, como tal, vítimas indefesas e silenciosas. Este estereótipo torna possível ignorar ou desvalorizar as lutas de resistência e a capacidade de inovação política das mulheres.
No passado dia 8 de março celebrou-se o Dia Internacional da Mulher. Os dias ou anos internacionais não são, em geral, celebrações.
São, pelo contrário, modos de assinalar que há pouco para celebrar e muito para denunciar e transformar. Não há natureza humana assexuada; há homens e mulheres. Falar de natureza humana sem falar na diferença sexual é ocultar que a “metade” das mulheres vale menos que a dos homens. Sob formas que variam consoante o tempo e o lugar, as mulheres têm sido consideradas como seres cuja humanidade é problemática (mais perigosa ou menos capaz) quando comparada com a dos homens. À dominação sexual que este preconceito gera chamamos patriarcado e ao senso comum que o alimenta e reproduz, cultura patriarcal.
A persistência histórica desta cultura é tão forte que mesmo nas regiões do mundo em que ela foi oficialmente superada pela consagração constitucional da igualdade sexual, as práticas quotidianas das instituições e das relações sociais continuam a reproduzir o preconceito e a desigualdade. Ser feminista hoje significa reconhecer que tal discriminação existe e é injusta e desejar activamente que ela seja eliminada. Nas actuais condições históricas, falar de natureza humana como se ela fosse sexualmente indiferente, seja no plano filosófico seja no plano político, é pactuar com o patriarcado.
A cultura patriarcal vem de longe e atravessa tanto a cultura ocidental como as culturas africanas, indígenas e islâmicas. Para Aristóteles, a mulher é um homem mutilado e para São Tomás de Aquino, sendo o homem o elemento activo da procriação, o nascimento de uma mulher é sinal da debilidade do procriador. Esta cultura, ancorada por vezes em textos sagrados (Bíblia e Corão), tem estado sempre ao serviço da economia política dominante que, nos tempos modernos, tem sido o capitalismo e o colonialismo. Em Three Guineas (1938), em resposta a um pedido de apoio financeiro para o esforço de guerra, Virginia Woolf recusa, lembrando a secundarização das mulheres na nação, e afirma provocatoriamente: “Como mulher, não tenho país. Como mulher, não quero ter país. Como mulher, o meu país é o mundo inteiro”.
Durante a ditadura portuguesa, as Novas Cartas Portuguesas publicadas em 1972 por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, denunciavam o patriarcado como parte da estrutura fascista que sustentava a guerra colonial em África. "Angola é nossa" era o correlato de "as mulheres são nossas (de nós, homens)" e no sexo delas se defendia a honra deles. O livro foi imediatamente apreendido porque justamente percebido como um libelo contra a guerra colonial e as autoras só não foram julgadas porque entretanto ocorreu a Revolução dos Cravos em 25 de Abril de 1974.
A violência que a opressão sexual implica ocorre sob duas formas, hardcore e softcore. A versão hardcore é o catálogo da vergonha e do horror do mundo. Em Portugal, morreram 43 mulheres em 2010, vítimas de violência doméstica. Na Cidade Juarez (México) foram assassinadas nos últimos anos 427 mulheres, todas jovens e pobres, trabalhadoras nas fábricas do capitalismo selvagem, as maquiladoras, um crime organizado
hoje conhecido por femicídio. Em vários países de África, continua a praticar-se a mutilação genital. Na Arábia Saudita, até há pouco, as mulheres nem sequer tinham certificado de nascimento. No Irão, a vida de uma mulher vale metade da do homem num acidente de viação; em tribunal, o testemunho de um homem vale tanto quanto o de duas mulheres; a mulher pode ser apedrejada até à morte em caso de adultério, prática, aliás, proibida na maioria dos países de cultura islâmica.
A versão softcore é insidiosa e silenciosa e ocorre no seio das famílias, instituições e comunidades, não porque as mulheres sejam inferiores mas, pelo contrário, porque são consideradas superiores no seu espírito de abnegação e na sua disponibilidade para ajudar em tempos difíceis.
Porque é uma disposição natural. não há sequer que lhes perguntar se aceitam os encargos ou sob que condições. Em Portugal, por exemplo, os cortes nas despesas sociais do Estado actualmente em curso vitimizam em particular as mulheres. As mulheres são as principais provedoras do cuidado a dependentes (crianças, velhos, doentes, pessoas com deficiência). Se, com o encerramento dos hospitais psiquiátricos, os
doentes mentais são devolvidos às famílias, o cuidado fica a cargo das mulheres. A impossibilidade de conciliar o trabalho remunerado com o trabalho doméstico faz com que Portugal tenha um dos valores mais
baixos de fecundidade do mundo. Cuidar dos vivos torna-se incompatível com desejar mais vivos.
Mas a cultura patriarcal tem, em certos contextos, uma outra dimensão particularmente perversa: a de criar a ideia na opinião pública que as mulheres são oprimidas e, como tal, vítimas indefesas e silenciosas.
Este estereótipo torna possível ignorar ou desvalorizar as lutas de resistência e a capacidade de inovação política das mulheres. É assim que se ignora o papel fundamental das mulheres na revolução do Egipto ou na luta contra a pilhagem da terra na Índia; a acção política das mulheres que lideram os municípios em tantas pequenas cidades africanas e a sua luta contra o machismo dos lideres partidários que bloqueiam o acesso das mulheres ao poder político nacional; a luta incessante e cheia de riscos pela punição dos criminosos levada a cabo pelas mães das jovens assassinadas em Cidade Juarez; as conquistas das mulheres indígenas e
islâmicas na luta pela igualdade e pelo respeito da diferença, transformando por dentro as culturas a que pertencem; as práticas inovadoras de defesa da agricultura familiar e das sementes tradicionais das mulheres do Quénia e de tantos outros países de África; a resposta das mulheres palestinianas quando perguntadas por auto-convencidas feministas europeias sobre o uso de contraceptivos: “na Palestina, ter filhos é lutar contra a limpeza étnica que Israel impõe ao nosso povo”.

Colunista: na CARTA CAPITAL - Boaventura de Sousa Santos- 09/03/2011

Curso de extensão capacita integrantes de comunidades tradicionais para a produção de Cartografia Social

Representantes de comunidades tradicionais do Paraná, pesquisadores e integrantes de órgãos públicos participaram, nos dias 24, 25 e 26 de fevereiro, do curso de extensão “Cartografia Social: uma ferramenta para o fortalecimento identitário e a mobilização social”, organizado pela Universidade Federal do Paraná, Projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil – Núcleo Sul e Rede Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais.
Ao longo do curso foram abordadas experiências de cartografia e mapeamento social, os conflitos e as formas de organização dos povos quilombolas, faxinalenses, ilhéus, pescadores artesanais e cipozeiros. Além disso, oficinas de capacitação orientaram o uso de equipamentos de coleta de informações, seleção dos dados e formatação de fascículos.
No Paraná, a produção de cartografias sociais teve início em 2005, quando 11 comunidades faxinalenses do Paraná construíram o primeiro de 10 fascículos da série Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil. A publicação foi elaborada nas regiões Centro e Centro Sul do estado, com a ajuda do professor e pesquisador Alfredo Wagner, coordenador do Projeto Nova Cartografia Social do Brasil. A partir desta época foram produzidas 12 cartografias no Paraná, além de outras duas que estão em fase de finalização. A nível nacional, aproximadamente 120 cartografias foram publicadas até 2010.
Para José Carlos Vandresen, assessor político da Rede Puxirão, a Cartografia Social é resultado da relação entre pesquisadores e os movimentos sociais, que busca criar o protagonismo das comunidades e a valorização do conhecimento dos povos. “É um processo que, para além das oficinas, exige uma relação muito próxima entre pesquisadores e os movimentos. O mapa é feito de gente, o povo está ali. É o povo que coloca os nomes, suas práticas e conflitos”. Segundo Vandresen, os pesquisadores ligados à Rede Puxirão cumprem o papel de monitorar e ajudar em algumas pesquisas, atuando de acordo com as demandas apontadas pelos movimentos.
O pesquisador afirma que não há uma política governamental que possibilite o mapeamento dos povos tradicionais, fator que interfere diretamente na aplicação da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, instituída pelo Decreto nº 6040/2007: “A execução e a implementação da política nacional é frágil por não existir essas informações, pois o governo não tem as informações e parece não querer ter”. Neste sentido, um dos grandes desafios apontados por Vandresen é a inclusão dos diversos povos brasileiros nos levantamentos oficiais do estado: “O IBGE deveria incluir nas suas categorias censitárias essa diversidade sociocultural do Brasil. Há uma resistência política em fazer isso, pois seria mostrar a outra cara do povo brasileiro, quem são os brasileiros”.

Ponto de vista jurídico
No dia 25, a assessora jurídica do Centro de Apoio que atua diretamente no atendimento às demandas das comunidades tradicionais, Dandara dos Santos Damas Ribeiro, fez parte da mesa “Instrumentos legais, acordos e normativas que instrumentalizam o reconhecimento legal das identidades coletivas, segundo sua territorialidade específica”, juntamente com o assessor jurídico da Rede Puxirão de Povo e Comunidades Tradicionais, André Halloys Dallagnol.
Durante a exposição, Dandara Damas falou do processo histórico de abertura do quadro normativo estatal para o respeito à diversidade cultural, marcado principalmente pela Constituição Federal de 1988 e pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Apesar do avanço normativo, a assessora salientou os limites da concretização do reconhecimento, principalmente no que diz respeito aos conceitos de povo e de território.
A explanação também trouxe elementos acerca do papel do Centro de Apoio dos Direitos Constitucionais enquanto interlocutor entre as demandas das populações tradicionais e o poder público. “O Ministério Público é um espaço de luta importante, pois tem como missão defender os direitos coletivos e dialogar com o poder público em nome dos interesses da população”.
André Halloys Dallagnol apresentou os instrumentos legais relacionados aos povos tradicionais, como a Constituição Federal de 1988 e a Convenção nº 169 da OIT. O assessor chamou a atenção para o papel dos povos tradicionais na preservação da natureza: “Não é a lei que conserva a natureza, são as comunidades tradicionais que mantém a biodiversidade do país”.

Cartografia Social como ferramenta de mobilização
A criação do Parque Nacional da Ilha Grande e da Área de Preservação Ambiental (APA) Federal do Noroeste do Paraná, em 1997, trouxe transformações profundas na vida da população ilhéus da região. Localizado no Rio Paraná, entre os estados do Paraná e Mato Grosso do Sul, a implantação do Parque impôs a saída dos habitantes. “O Parque e a APA foram criados sem audiência pública, sem avaliar se iria nos afetar ou não. Simplesmente veio uma lei e disse que não podíamos mais morar lá”, lembra Misael Jefferson Nobre, ilhéu que hoje vive no município de Querência do Norte. Nobre resistiu à saída e por ter sido um dos últimos moradores a deixar a ilha, em 2002, fui multado em 57 mil reais. Segundo o ilhéu, a luta para permanecer no território também resultou na prisão de moradores.

Por meio da articulação com a Rede Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais, iniciada há cerca de três anos, as famílias que viviam nas ilhas da região Noroeste do Rio Paraná avançaram na organização e na reivindicação de direitos. “Até poucos anos atrás nosso povo era invisível, ninguém sabia da nossa tradição e do conflito que vivemos desde a criação do Parque e da APA, onde estão nossas ilhas”, afirma Nobre.

A Cartografia Social dos Ilhéus Paranaenses contribuiu para a visibilidade evidenciada por Misael Jefferson Nobre. Publicada em 2010, a cartografia reuniu informações referentes às práticas culturais da vida nas ilhas antes da realocação, à forma de cultivo do solo e os conflitos sociais vivenciados no território. “A cartografia foi uma ferramenta importante para nós, nos deu visibilidade para avançar e conseguir conversar com os órgãos ambientais. Por meio dela nós recuperamos nossa identidade como ilhéus”, garante Nobre.

Ednubia Ghisi

sexta-feira, 4 de março de 2011

Brasil deve explicações sobre consulta a povos afetados

Por racismoambiental, 01/03/2011 16:50, http://racismoambiental.net.br/2011/03/brasil-deve-explicacoes-sobre-consulta-a-povos-afetados/


Comissão de especialistas que avalia o cumprimento de acordos por parte dos Estados membros da Organização Internacional do Trabalho (OIT) pede que governo brasileiro responda questões sobre a aplicação da Convenção 169
O Blog da Redação da Repórter Brasil destaca que o governo brasileiro está sendo novamente cobrado internacionalmente a dar respostas sobre o real cumprimento dos termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê a consulta e a participação de povos e comunidades tradicionais, por meio de suas instituições representativas, toda vez que medidas legislativas ou administrativas possam afetar-lhes diretamente.
De acordo com a Comissão de Especialistas em Aplicação de Convênios e Recomendações, órgão independente de juristas dedicados a examinar a real efetivação de compromissos por parte dos Estados membros da OIT, o Executivo federal ainda não apresentou todas as explicações relativas à solicitação especial encaminhada ao país ainda em 2005.
A informação faz parte do informe do colegiado que foi divulgado no último dia 16 de fevereiro. No mesmo documento, a Comissão sublinha casos que se encaixam na Convenção 169 e carecem de posições plenamente satisfatórias -como o da instalação de estrutura para projeto espacial em Alcântara (MA), onde vivem quilombolas, e o da Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo Monte, no Pará, que intervirá diretamente na vida de indígenas e ribeirinhos.
Banco dos réus
O julgamento de três acusados pelo assassinato do cacique Marcos Veron, liderança do povo Guarani Kaiowá, também merece espaço no Blog da Redação.
Iniciado na segunda-feira (21) da semana passada, o julgamento foi encerrado na sexta-feira (25) com a absolvição de Carlos Roberto dos Santos, Jorge Cristaldo Insabralde e Estevão Romero da acusação de assassinato do líder indígena e de outras seis tentativas de homicídio. Os mesmos réus, contudo, foram condenados pelos jurados pelos crimes de sequestros, tortura e formação de quadrilha armada. A pena estipulada foi de 12 anos e três meses, mas como a sentença ainda não transitou em julgado, eles, que passaram quatro anos e oito meses sob prisão preventiva, foram liberados.
O caso foi transferido do Mato Grosso do Sul, onde o crime ocorreu há mais de oito anos (janeiro de 2003), para a cidade de São Paulo (SP). O Ministério Público Federal (MPF) solicitou a mudança de foro sob alegação de inexistência de condições de isenção para garantir um julgamento imparcial.
Ainda devem ser submetidos a julgamento o fazendeiro Jacinto Honório da Silva Filho, apontado como mandante do assassinato, e Nivaldo Alves Oliveira, réu foragido acusado de dar o golpe final fatal no líder indígena.

http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=1864